domingo, 27 de novembro de 2011 - Postado por Kamila Silva às 14:34

A louca do jardim

Pra onde vai o amor? De manhã eu preciso buscar um remédio pra minha mãe, depois tenho pilates e às 11 em ponto preciso estar na agência pra decidir um roteiro de vídeo para uma apresentação interna que o cliente vai fazer para a área comercial. Pra onde vai o amor? Quero aparecer na sua agência, subir as escadas correndo.
Porque essa pergunta precisa ser feita de peito ofegante. Pra onde vai o amor? Você tem a apresentação de uma concorrência. E tem uma equipe, uma mesa, um lixo, um carro alto, um cabelo grande, um sobrenome importante, um quadro caro, uma ex namorada top model, dezenas de garotinhas apaixonadas. Pra onde vai o amor? Porque quando deitamos no chão da sua sala e você me perguntou "quanto tempo você demora pra dizer que ama?". Porque quando você me mandou aquele e-mail falando que dormiu bem quando me conheceu. Porque a gente estava tão nervoso no dia do Astor, Subastor.
Porque eu tinha uma escova de dentes aí e você tinha uma escova de dentes aqui. Pra onde vai o amor? O que você fez com o seu? Deu descarga? O que eu faço com o meu? Dai eu te ligo, escondida no jardim da agência que eu trabalho. Chorando horrores. E te peço desculpas. "Eu sei que faz só um mês que estamos juntos mas o que você fez com o nosso amor?".
Por que você ficou frio e sumiu e esqueceu e secou e matou e deletou e resolveu e foi? E você diz que está trabalhando e eu me sinto idiota. Me sinto esfolada viva pelo mundo. Me sinto enganada por anjos. Me sinto inteira uma enganação. Respiro mentiras. Visto desculpas. Ajo disfarces. Porque a gente estava sim se amando mas você correu pra levantar antes a bandeira do "se fudeu trouxa, o amor não existe". Justo você que eu escolhi pra fugir comigo das feiúras do mundo
Porque você me emprestava a mão dormindo e pedia colo vendo tv e queria me fazer camarões fritos e escondia as meias suadas quando eu chegava antes do que você esperava. E você me perguntava o tempo todo se eu percebia como era legal a gente. E então, só pra fazer parte da merda universal de toda a bosta da vida, você se bandeou pro lado do impossível e se foi e me deixou como louca, escondida no jardim da agência, chorando, te perguntando pra onde foi o amor. E você riu e disse "mas eu só estou fazendo minhas coisas". E eu me senti idiota e louca e chata e isso foi muito cruel ainda que seja tão normal. Normal não me serve não encaixa não acalma.
E eu achei que a gente podia ter uma bolha nossa pra ser louco e improvável e protegido do lugar comum do mundo mediano adulto das pessoas que riem e fazem suas coisas. E tudo ficou feio, até você que é lindo ficou feio.
E eu quis me fazer cortes. Porque viver é difícil demais. E todo mundo me olhando, rindo, fazendo suas coisas. E daqui a pouco eu rindo e fazendo minhas coisas. E no fundo, abafado, dolorido, retraído, medicado, maduro, podre: onde está o amor? Onde ele vai parar? Onde ele deixou de nascer? Onde ele morreu sem ser? Por que eu sigo fazendo de conta que é isso.
As pessoas seguem fazendo de conta que é isso. E por dentro, mais em alguns, quase nada em outros, ainda grita a pergunta. O mundo inteiro está embaixo agora do seu lindo e refinado e chique e rico prédio empresarial de milionários. Gritando nas janelas, batendo nas portas, tirando você da sua reunião: o que você fez com o amor? Esse dinheiro todo, essa responsabilidade toda, esses milhões todos, essas pessoas todas que você quer que te achem um homem.
E o amor, o que você fez com ele? Enfiou no cu? Colocou na máquina de picar papel? Reaproveitou a folha pra escrever atrás? Reciclou? Remarcou pra daqui dois anos? Cancelou? Reagendou o amor? Demitiu o amor? É o amor que vai fazer você ser isso tudo e não isso tudo que você usa pra dar essas desculpas pro amor. Porque quando eu sentei no cantinho da cama e você leu seu livro de poesias de quando era criança. Porque quando você ficou nervoso porque queria me dizer que naquele minuto não estava me amando porque você acha que amor é isso além do que você pode. Amor é só o que você já estava podendo. O que você fez com esse pouco que virou nada? Com o muito que poderia virar? Eu aleijada, engessada, roxa, estropiada, quebrada, estou na porta, esperando você, por favor, me ensina, o que fazer, vou fazer o mesmo com o meu.
Vou mandar junto com o seu. Nosso amor pro inferno, longe, explodido, nada. E a gente almoçando em paz falando sobre o tempo e as pessoas escrotas e o filme da semana. Bela merda isso tudo, bela merda você, bela merda eu, bela merda todos os sobreviventes que riem e fazem suas coisas e almoçam e falam de filmes. E por dentro o buraco gigante preenchido por antidepressivos, ansiolíticos, calmantes, cervejas, maconhas, viagens e mais reuniões. Pra onde foi o amor? De pé seguimos pra nunca saber, pra nunca responder, pra nunca entender
Pra onde? Você lendo o texto mais lindo da minha vida sobre o último dia morando com seus pais, você achando as moedinhas que o seu pai escondia no jardim quando você era criança, você me contando isso tudo baixinho e eu sentindo tantas milhares de coisas lindas, você falando da merda boiando e a dor dos seus fins de amor, você dormindo com seus cachinhos virados para o meu nariz, você fazendo a piada dos ombrinhos mais altos e mais baixos pra tirar sarro dos homens artistas e burocráticos, você por um mês e tanto amor. Todos os cheiros de todos os seus cantos. E agora eu louca porque não se pode sentir, porque senti sozinha, porque não se pode sentir em tão pouco tempo.
Que tempo é esse quando o amor se apresenta tão mais forte e sábio que as regras de proteção? Quem quer pensar em acento flutuante quando se está voando? Quem quer pensar em pouso de emergência quando se está chegando em outro mundo melhor? E agora nada e você nada e tudo nada. O amor no planeta das canetas Bic que somem. O amor mais um como se pudesse ser mais um. O amor da vida de um mês. Você com medo de ser mais um e você único e tanto amor e tão pouco tempo.
O que você fez com ele para eu nunca fazer igual? Eu prefiro ser quem te espera na porta pra entender. Eu prefiro ser quem te espera na outra linha pra entender. Eu prefiro ser a louca do jardim enquanto o mundo ri e faz suas coisas. Do que ser quem se tranca nessas salas infinitas suas pra nunca entender ou fazer que não sente ou não poder sentir ou ser sem tempo de sentir ou ser esquecido e finalmente não ser. 
Por Tati Bernardi

Postado por Kamila Silva às 14:27

O copo de água

Eu mastigava com culpa cinco daquelas bolinhas de amendoim. Não era culpa, era ansiedade. Não, era tédio. Minhas amigas conversavam longamente sobre algo que não me interessava nem por um segundo. As chatices do marido, as chatices do trabalho, as chatices do trânsito. Minha vida não é chata.
Eu inventaria um trabalho, uma casa, um dia, um modo, um jeito. E inventei. As festas na Carol sempre tinham comidas incríveis mas, naquele dia, eram só bebidas. Eu não bebo. Quer dizer, agora, de vez em quando, comecei a beber só porque entendi quando me falavam que sem álcool é tudo muito pior. Então passei a beber pouco. Uma taça de vinho? Mas naquele dia eu não podia beber porque não tinha comido e também porque não estava a fim. Eu estava a fim de ir embora. Voltar pra minha vida que não era chata mas ficava chata quando percebia que eu tinha uma vida dentre todas aquelas vidas que se faziam perceber. Olhei pra porta. Ela abriu e você chegou. Eu não te via há 3 meses e alguns dias. Foi então que o narrador do meu cérebro pigarreou e mudou o tom. Eu me narro tudo desde que me tenho por cérebro.
Como se o tempo todo eu me contasse e contasse o mundo. Para ver se eu existo e se o mundo existe. Para ver se eu me suporto e se suporto o mundo e se o mundo me suporta. É insuportável, mas o tempo todo minha cabeça narra tudo. Minuciosamente, detalhadamente, dolorosamente. O tempo todo eu cavoco o segundo, o pó, a pele, o que se diz, o que se parece. Tentando narrar o mais profundo do profundo do que eu poderia narrar. Só pra responder o mais profundo do profundo do que eu poderia perguntar. Então o narrador começou dizendo assim "e então ele entrou por aquela porta". Você entrou por aquela porta. Eu apertei o braço da Fernanda: "é ele! Ai, meu Deus, é ele".
Quem, Tati? Ele. Mas qual dos "eles"? Você tem tantos "eles", Tati. O último. Você era o último homem que eu tinha amado e, portanto, o "ele" da vez. Com seu cabelo alto, largo, rococó. Eu amo seu cabelo. Amo os cachos mais brancos que parecem ornamentos rococós para suas orelhas. Os puxa-sacos te abraçam. Eu percebo quem gosta de você e quem só te abraça porque um dia pode precisar de emprego. Alguns te abraçam gostando de você. E então eu fico feliz, porque eu gosto que gostem de você. Porque você é o tio da Lia, a bebezinha que pensa muito antes de rir pra qualquer bobagem. Você é o cara que, quando foi embora, me deixou sentindo uma dor bem enorme, mas eu gosto de você, você não fez por mal. Seu mal nunca foi por mal. Então, eu gosto que gostem de você. E o narrador me narra seus tênis sempre tão publicitários.
Seus pés gordinhos e pequenos e tão perfeitos pra carinhos. E narra sua roupa de chefe descolado. E narra o segundo em que você me percebe na festa e cochicha no ouvido do seu amigo alto. E narra todas as infinitas vezes em que você passou por trás de mim, esperando que eu me virasse e concordasse com seu "oi" cordial. Preferindo que eu não me virasse, assim você podia não sentir essas coisas complicadas todas que sentimos juntos. Então, cansada de te narrar, chamei firme seu nome, com um sorriso maduro.
Mordendo a língua que tremia batendo no céu da boca. Minha língua, quando te vê, quer logo te dizer coisas lindas e assustadoras. Então é uma luta prendê-la no céu, deixando na terra apenas meu cordial "oi" que você queria sem querer. Então fomos pegar água. Brindamos com a água. Você com sua mania de conversar quase dentro da minha cara. Eu vesga de te ver tão perto. Seu charme míope e inseguro. O menino inseguro que conversa colado na minha retina. Que insegurança é essa? Eu não te pergunto nada, apenas desejo tanto você que sorrio como se não me importasse com sua existência. Mas você resolve se explicar mesmo assim. Porque "seus olhos estão sempre me perguntando algo", você diz. E você começa sua loucura que me faz gostar ainda mais de você. Empurra a palma contra o peito e diz "eu gosto assim, Tati, fechado, protegido, eu gosto". Então você olha para o meu copo d'água e diz: "eu sou só um copo d'água, mas você ficava me olhando e pensando nas bolhas e nos gelos e nos canudinhos e na transparência e se a água era isso ou aquilo. Água é só água, por que você complica a água, Tati?". Então apagaram a luz e eu quis me esconder dentro do seu paletozinho de publicitário descolado e ouvir suas batidas descompassadas e embaladas pelo seu cheiro de alma boa. Mas você pegou na minha mão e continuou dizendo que uma mão, muitas vezes, é apenas uma mão. Mas que eu insistia em enxergar os buracos entre os dedos, os anéis que separavam os dedos, a dor da separação dos dedos, a gota da bebida gelada entre os dedos. E que você não poderia suportar isso. A maneira como eu te olhava. Vendo mais, inventando mais, complicando mais. E eu quis te dizer que tudo bem, eu seria uma menina simples. Eu mataria meu narrador, minhas possibilidades, meus mundos, minhas invenções. Só de ver seus cachos mais grisalhos e rococós ornando seus medos e superficialidades eu desejei não ser mais eu pra ser qualquer coisa que pudesse ser sua. Mas enchi meu peito surrado e murcho de coragem e te disse que, infelizmente, onde você era apenas um copo d' água eu era a tempestade.
 por Tati Bernardi

quarta-feira, 23 de novembro de 2011 - Postado por Kamila Silva às 09:42

A bolacha premiada do pacote de biscoitos finos

Por Eduardo Soares (retirado do blog mulherao.wordpress.com.br)
1992.
 O diálogo abaixo aconteceu na quadra de uma escola pública suburbana, durante o intervalo matinal.
- O que você vai ser quando acabar o segundo grau?
- Humm..não sei. Ainda estamos na oitava série! Mas, acho que serei médica. E você?
- Ih, que bobeira! Com esse negócio da Eco 92 (*), certamente vou ser empresário do meio ambiente! Tu vai rir quando me ver na TV, durante o jornal das oito!
Durante todo o segundo grau, ambos sempre foram os nerds da sala, apostas certas dos professores de que seriam grandes profissionais em qualquer área que escolhessem entrar. De fato, Cristina tinha enorme facilidade em aprender o funcionamento das moléculas, membrana, citoplasma, núcleo, glóbulos, estrutura do DNA, enfim, toda engenharia do corpo humano. Por outro lado, César lidava com números de maneira assustadora. Sua nota mais baixa foi um 7,5 durante todo segundo grau. Nas demais matérias, os dois também tinham desempenhos acima da media porém ela nas ciências e ele na matemática eram praticamente imbatíveis.
Como acontece com todos nós, o tempo passou rápido e sem perceber em 1997 a dupla prodígio estava na faculdade.
- Cinco anos atrás estávamos aqui na quadra brincando sobre futuro, lembra? Eu achava que seria medica! Ainda achava! Nunca me vi fazendo outra coisa! Mas, sei lá, agora que estamos entrando na faculdade fico nervosa…é um novo passo, o mais importante que vai construir nossa carreira!
- Relaxa, Cris! Cara, sempre fomos os melhores da turma! Você acha que agora iremos desaprender só por causa de nervosismo? Sem medo! Somos bons! Vamos “bebemorar”, minha linda!
Ambos estavam no calor hormonal dos 18 anos. Sem admitir, Cristina começou a sentir uma atração um tanto infanto-juvenil por César. Este por sua vez sentiu que ela tinha uma queda e resolveu curtir a situação. De vez em quando ficavam às escondidas nos intervalos da universidade. Ele, aproveitava despropositadamente os encontros enquanto ela alimentava um sentimento não declarado de carinho cada vez maior pelo “namorado/amigo”. Passou o tempo e Cristina, sempre dedicada, conseguiu realizar seu grande sonho de ser médica. Mas aquele momento era um misto de alegria e tristeza pois, enquanto ela impunha o diploma nas mãos, Cézar se perdeu no meio do caminho. De aposta certa ele transformou-se em triste promessa desperdiçada. Sua presença na faculdade era cada vez rara ao passo que a curtição tomava conta da sua vida. Por sorte, passou entre os dez melhores do pais no único concurso que prestou e com isso seu salário custeava a vida inconsequente que levava.
Com 25 anos de idade cada um, os amigos estavam com as vidas relativamente bem encaminhadas. Certa vez, ambos se esbarraram numa festa da alta sociedade. O encontro aconteceu anos depois de uma ausência “social” inexplicável da parte dele. Cristina continuava sonhando com aquele menino/adolescente alegre, inteligente e dedicado. Vê-lo anos depois, fez brotar naquele coração doce uma mistura de alegria e preocupação.
- Cézar! Não acredito!! Por onde tem andado? O que tem feito da vida, seu maluco? Me dá um abraço!
- Cris! Minha linda!! Como vai você, doutora??
O reencontro foi caloroso. Em certo momento ambos pareciam estar 12 anos atrás, na mesma escola, com a mesma vida humilde e o mesmo carinho juvenil. Depois de algum tempo de prosa, um beijo aconteceu. Ali, Cristina se entregou de corpo e alma enquanto Cézar não parecia estar muito animado. Perguntado sobre o motivo do visível desconforto, ele foi taxativo:
- Ehhh….Cris…quantos anos sem te ver, né? Então, por isso mesmo…você estava uma gata na época da faculdade! Eu sentia o maior tesão, papo sério! Mas, pô…agora tu deu uma engordada! Sei lá, ficou desleixada! Numa boa, tu deu uma queda considerável! Acho que a medicina deu um estrago no teu corpo! Bem, tu sabe…a festa é fina! Fica longe de mim, não vou precisar de você, me faz esse favor! Não queime meu filme! Foi mal, não quero passar vergonha com você do meu lado…se cuida, valeu?
Ao sair, ele entregou um cartão a ela onde dizia: CÉZAR MACHADO. PROMOTER. BOATE BELIZE.
Naquele instante ela associou as informações e lembrou que dias antes daquele encontro uma boate havia sido inaugurada. No mesmo dia, aconteceu uma briga que estampou boa parte dos jornais devido a uma pancadaria generalizada envolvendo um grupo de gordos que pretendia passar a noite naquele lugar mas que foram alvos de comentários preconceituosos com os donos do estabelecimento. Leia-se “donos do estabelecimento” por Cézar Machado e um amigo conceituado na high society carioca.
Cristina ficou petrificada por alguns minutos. Aquelas palavras entravam na sua cabeça como pedras enormes jogadas sem piedade. Dor. Raiva. O choro foi inevitável. E assim foi durante os dias seguintes, a cada lembrança latejante na sua cabeça.  O encanto de uma vida toda foi desfeito em fração de segundos sempre que a união de palavras infelizes ecoava a ponto de deixá-la com insônia:
“Eu sentia o maior tesão”
“Tu deu uma queda considerável”
“Você estava uma gata na época da faculdade”
“Não quero passar vergonha com você do meu lado”
Num salto do tempo, vamos para 2010. Cristina, então já renomada psiquiatra, chegou em casa depois de dar uma palestra sobre o novo perfil dos drogados pertencentes às classes A e B. Seu status era tamanho que o prefeito havia feito um convite para que ela ocupasse uma vaga na secretaria de saúde do Rio de Janeiro. Enquanto a proposta balançava seu coração, ela ligou a TV para relaxar um pouco. Zapeando os canais, descobriu que um playboy trintão fora assassinado devido a dívidas e seu amigo foi preso num estado deplorável. Tao deplorável que foi preciso passar um minuto para que Cristina associasse aquela imagem com a de Cézar. Na verdade ela soube que era dele devido ao nome daquele drogado, cujo corpo atlético cedera vez para um homem de 1,80 com inacreditáveis 52 quilos, dono de poucos dentes e portador de inúmeras feridas espalhadas na pele ressecada e imunda.
Cézar foi parar numa clinica de reabilitação para dependentes químicos. Naquela altura, qualquer tipo de ajuda seria bem vinda, pois sua vida acabou anos atrás e o que restara não era o suficiente para classificar aquele estado quase vegetativo como sub-humano. No primeiro dia, ele foi direcionado para a ala de apoio psiquiátrico. Humilde, pediu licença e entrou na sala. Viu que a doutora estava em pé, de costas, fazendo algumas anotações. Cézar sentiu atração por ela, dona de um corpo que vestia G ou GG, bem diferente das meninas esquálidas que ele pegava nas noites regadas a drogas.
- Cézar Machado, sente-se por favor.
A voz não era estranha. Calado estava, calado ficou e simplesmente atendeu ao pedido da doutora. Parecia um cachorro amedrontado, faminto, trêmulo. Ela continuava de costas quando soltou os seguintes comentários:
- “Tu vai rir quando me ver na TV, durante o jornal das oito”, lembra? Não, eu não ri. “Acho que a medicina deu um estrago no teu corpo”, lembra? Hoje, vejo que você suas escolhas deram vários estragos no seu corpo.  E contrariando sua frase…
Nesse instante ela ficou de frente para Cézar, sem fitá-lo cara-a-cara, deixou um cartão na mesa (onde estava escrito DOUTORA CRISTINA MUNHOZ. PSIQUIATRA) e seguiu em direção à porta, antes de concluir a frase.
-…sim, você vai precisar de mim.
Cézar ficou petrificado por alguns minutos. Aquelas palavras entravam na sua cabeça como pedras enormes jogadas sem piedade. Merecidamente.
E você, vai continuar achando que o mundo acabou só porque (graças a Deus) ouviu um “não quero passar vergonha com você do meu lado” daquele que aparenta(va) ser a bolacha premiada do pacote de biscoitos finos?
(*) Para quem tem menos de 20 anos, a ECO 92 aconteceu no Rio de Janeiro e serviu para buscar meios de conciliar o desenvolvimento sócio-econômico com a conservação e proteção dos ecossistemas da Terra (em outras palavras, iniciou-se ali o conceito do- hoje – propagado desenvolvimento sustentável).